Nas décadas de 1920, 1930 e 1940, o principal meio de comunicação na capital acreana era o transporte fluvial. Nesse período, o Cine Éden (Cine Teatro Recreio) foi uma das mais arrojadas casas de espetáculos de Rio Branco, promovendo por mais de duas décadas recitais, concertos, projeções cinematográficas, peças teatrais e conferências de interesse público.
Na época do Cinema Mudo, quando as sessões de filmes eram acompanhadas por instrumentistas, a pequena orquestra do Cine Éden era regida por um pistonista, Plácido de Paiva Melo, e por uma pianista, Hilda Leite. E para avisar o início da projeção, um alto-falante, instalado no prédio, reproduzia o “Cisne Branco”.
“Quando o alto-falante tocava anunciando as matinês, as pessoas que iam de um lado a outro, fregueses do largo passeio entre o Bar Brotinho e o cinema, corriam para a sessão. Era maravilhoso, pois esperávamos com ansiedade os filmes, que demoravam a chegar cerca de três meses, porque tudo era feito por transporte fluvial - eram as chatas que traziam os filmes”, relata Raimundo Ferreira, antigo morador do bairro Quinze, no Segundo Distrito, e frequentador assíduo do antigo Cine Éden.
O figurino era parte essencial para o sucesso de um filme e o guarda roupa das atrizes inspirava a moda local. “Lembro que tirávamos dos filmes os modelos para irmos aos bailes. Lembro de Grace Kelly, Doris Day: era a época das saias amplas e cintura marcada. Amava Rita Hayworth em ‘Gilda’, com aqueles cabelos compridos e cacheados. Mas para mim, a maior de todas foi Audrey Hepburn, principalmente em ‘Bonequinha de Luxo”, revela a professora Maria Celeste Coelho, moradora do Segundo Distrito.
Além de projeções cinematográficas, o espaço era movimentado por companhias teatrais que chegavam de outros estados, além das iniciativas do teatro amador local, com destaque para os nomes Osvaldo Pinheiro de Lima e Garibaldi Brasil.
“O antigo cinema do Segundo Distrito é patrimônio histórico. Ele nos remete ainda às influências e tendências do cinema mundial, de década por década, tendo contribuído grandemente para a informação e formação de várias gerações pela inegável posição de ‘porta para o mundo’. É uma referência da memória social de Rio Branco”, descreve a historiadora Fátima Almeida.
A irreverência do poeta
Um dos frequentadores do Cine Recreio era o poeta Juvenal Antunes, que costumava ser aplaudido de pé ao entrar no espaço. Juvenal nasceu em 1883, no Rio Grande do Norte, e chegou ao Acre em 1912, para ser promotor público. O estilo irreverente e anarquista, fez dele um ícone da cultura acreana nessa época. Boêmio, Juvenal amava vestir seu robe de chambre e andar de um lado a outro recitando suas poesias, na calçada do Hotel Madri.
“Ele era um sujeito baixinho e magrinho. Juvenal morava no Hotel Madrid que era dos meus pais, onde hoje funciona a Fundação Elias Mansour. Tomava todo dia uma cerveja e quando ficava um pouco 'alto' começava a recitar suas poesias, algumas eram consideradas indecentes pela sociedade da época. Uma vez ele caiu no barranco, pois estava sentado à mesa com um guarda-sol e veio um vento derrubou a mesa e ele foi junto”, lembra a escritora Florentina Esteves.
A escritora possuía uma das raras publicações de Juvenal Antunes, livro que ela entregou à novelista Glória Perez, para ajudar na pesquisa sobre o personagem retratado na minissérie ‘Amazônia: de Galvez a Chico Mendes’. "O que está na minha memória bem viva é esse trecho poético que acho magnífico: 'Bendita sejas tu, preguiça amada, que não consentes que eu me ocupe em nada'", diz Florentina.
Os bailes da Tentamen
No carnaval do Segundo Distrito, além dos grupos carnavalescos e dos bailes, eram comuns as batalhas de confetes (Foto: Patrimônio Histórico) | |
Mas não era somente o Cine Recreio que animava as noites do Segundo Distrito da capital. Havia também os Arraiais da Igreja Nossa Senhora da Conceição, a sinuca do Hotel Madrid, os encontros no Bar Brotinho e os bailes da Sociedade Recreativa Tentamen, famosos por abrigar a fina flor da sociedade acreana.
“As famílias tradicionais dos seringalistas, as autoridades políticas e os comerciantes abastados frequentavam os bailes da Tentamen. Essas famílias moravam na rua 1º de Maio, chamada também de Rua África, era a nata da sociedade. As moças dessas famílias, principalmente, se vestiam muito bem”, diz Florentina ao lembrar as fantasias elaboradas usadas pelos brincantes nos bailes carnavalescos e nas batalhas de confete.
“Quem frequentava a Tentamen não ia aos bailes do Rio Branco e vice-versa”, conta a escritora sobre a rixa entre moradores dos primeiro e segundo distritos da cidade. “A disputa entre os blocos carnavalescos era a maior. Eles se esmeravam nas fantasias e na animação para superarem um ao outro”.
Patrimônio histórico-cultural de Rio Branco, a Tentamen foi fundada em 1924. O prédio, que mantém até hoje os famosos lambrequins (desenhos em madeira) na fachada, é todo em madeira e segue o estilo dos casarões erguidos durante o boom da borracha.
O Cinema Acreano
As décadas 1970 e 1980 viram nascer o Estúdio de Cinema Amador de Jovens Acreanos (Ecaja). Formado pelos cineastas autodidatas Aldalberto Queiroz, Tonivan e Teixeirinha do Acre, que mudou o nome artístico para João Manhãs, o grupo surgiu do sonho de produzir radionovelas.
“Para nós, jovens que morávamos longe dos grandes centros de efervescência cultural, era tudo mais difícil. Foi com o cinema que mudamos a nossa visão de mundo. Nós somos a vanguarda do Movimento Cultural no Acre, pois conseguimos não apenas produzir filmes, mas romper com vários processos. Uma das coisas que fizemos foi ir ao Palácio Rio Branco, no dever político de coletivizar a nossa luta inicial. Quando chegamos lá tivemos que ouvir: “Vão plantar batatas que vocês vão fazer melhor negócio”. Pensa que a gente desistiu? Não. Foi isso que nos fortaleceu e insistimos até conseguirmos ser ouvidos”, conta Adalberto, atual presidente da Associação Acreana de Cinema (Asacine).
O grupo reivindicava um órgão de apoio para a cultura, e foi a partir daí que foi criado o Departamento de Assuntos Culturais da Secretaria de Educação, a Fundação Cultural, e na Biblioteca Pública, o Grupo Ecaja ganhou um espaço para as reuniões – que mais tarde serviu para abrigar a antiga filmoteca. “Tudo isso foi conquistado devido às nossas participações em festivais nacionais de cinema em Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Os governos Geraldo Mesquita e Joaquim Macedo foram importantes para essas conquistas”, diz Adalberto Queiróz.
“A gente buscava inspiração nas novelas que a gente ouvia na Rádio Difusora Acreana e criava os roteiros. Era a época do super 8mm, e tudo era feito da nossa vontade e paixão pelo cinema”, comenta Tonivam, que hoje é o coordenador da Filmoteca Acreana. Ele relembra ainda que o Ecaja produziu cerca de oito filmes super 8mm, e que hoje se encontram em processo de digitalização.
“Fracassou meu Casamento”, de Teixeirinha do Acre, foi o primeiro longa-metragem produzido pelo grupo, além de “Rosinha, a Rainha do Sertão”, “Gatinhas e Gatões”, entre outros. “A gente tinha que gravar os ruídos, os diálogos e música nos gravadores, e depois é que era mixada a trilha sonora com as imagens. Era a sonoplastia: o som da água feito na bacia, da porta fechando, do trote do cavalo. Tudo era feito em equipe: o Tonivan e o Teixeirinha ajudavam na concepção do roteiro, na trilha sonora, nas filmagens”, conta Adalberto Queiroz.
O movimento teatral
Na década de 1980, o teatro local alcançou forte expressão. Herdeiros do espírito dos anos setenta – marcados pelos conflitos por posse de terras, o surgimento do jornal Varadouro e o cineclube Aquiri –, os artistas usavam a linguagem teatral como forma de protesto.
“A gente queria dizer que a cultura brasileira não era somente o que os cariocas faziam e o que era reproduzido pela TV”, lembra Dinho Gonçalves, um dos integrantes do grupo ‘Direto do Rio’ – formado também por Ivan de Castella, Alexandre Nunes, Rogério Curtura e Antônio de Alcântara.
O ‘Direto do Rio’ usava a sátira como forma de expressão. “A gente queria denunciar muitas coisas, entre elas a expulsão dos seringueiros da floresta, além de outras formas de opressão, preconceito, conflitos e denunciar o governo, que detonava com a população. Isso tudo de forma bem humorada”, conta o ator Ivan de Castella.
Foi neste período que surgiu o Teatro Barracão. A falta de espaços para que os grupos desenvolvessem suas atividades levou o movimento teatral na época a lutar para que o Barracão, ao invés de virar o necrotério do Hospital Geral, se constituísse num lugar de fruição das diversas linguagens artístico-culturais. A pressão dos artistas surtiu positivamente. Eles conseguiram o que pretendiam, isso tudo graças ao ativismo cultural de José Marques de Sousa, o Matias, um dos maiores teatrólogos do Acre.
“O Barracão é a história do Matias. Sua arte era o teatro popular e ele a usava para e mudar a vida das pessoas que conviviam com ele, tentava passar para elas, pessoas simples, uma consciência sócio-política ambiental”, comenta Lenine Alencar, presidente da Federação de Teatro do Acre (Fetac).
Localizado na Baixada da Sobral, após ter passado por nova reforma, o Teatro Barracão foi reaberto há cerca de um mês, pela Fundação de Cultura Elias Mansour, atendendo reinvindicação da comunidade. O espaço abriga salas que homenageiam ícones da cultura acreana. A Sala Matias, por exemplo, tem capacidade para 150 lugares e é palco de apresentações teatrais, oficinas e outras atividades. O espaço de inclusão digital traz o nome do diretor teatral e ator, Beto Rocha. Nele, além de funcionar o Telecentro, serão desenvolvidas oficinas de cultura digital com a comunidade. No espaço que leva o nome de Vó Nazaré, contadora de histórias e atriz, funciona a biblioteca. A Sala Multimídia leva o nome do poeta, compositor e bailarino Maués Melo. O Barracão também agrega o Cine Baixada, criado recentemente por um grupo de jovens da comunidade.
A música dos festivais
Assim como no teatro, a música no Acre teve um período de grande difusão com os festivais de música. Eles foram espaços de divulgação da produção musical autoral, que trazia a identidade cultural acreana, marcada por vários estilos musicais. Um dos projetos mais arrojados teve sua primeira edição em 1980, o Festival Acreano de Música Popular, o Famp.
“Antes mesmo de falar das consequências que os ‘Famps’ tiveram sobre a música acreana é preciso lembrar que a partir de 1983 esse movimento foi engrossado pela realização dos Festivais do Amapá, tornando a década de 1980, fundamental para a atual identidade da música acreana”, comenta o historiador Marcos Vinícius Neves, em pesquisa para o projeto Registro Musical.
O historiador relata ainda que os festivais serviram para que toda uma nova geração de músicos acreanos despontassem no cenário cultural. “Àqueles músicos que desde os anos 1960 e 1970 vinham produzindo e divulgando a música no Acre, como Crescêncio Santana, Da Costa, os irmãos Gallo, os irmãos Mansour, Geraldo Leite, juntaram-se aos jovens que produziam, não só música, mas poesia, informação, ideias, comportamentos e opiniões. Nomes como Pia Vila, Felipe Jardim, Damião Hamilton, Sérgio Taboada, Narciso Augusto, Beto Brasiliense, João Veras, Maués, Jorge Carlos, Bacurau, Tião Natureza, e tantos outros”.
Vinícius aponta que além da quantidade de valores surgidos nessa época, outro rico fator foi a diversidade das linguagens e temáticas utilizadas por eles. “Nos festivais surgiram músicas de protesto contra a degradação ambiental, antes mesmo de a ecologia tornar-se ponto de interesse mundial; as que cantavam o modo de vida urbana dos filhos da burguesia e dos marginalizados pela sociedade; que contavam do cada vez mais duro cotidiano seringueiro, entre a melancolia da extinção e a esperança de um improvável futuro; fizeram-se músicas que denunciavam, ainda que inocuamente, a desfaçatez da política e do autoritarismo; músicas, enfim, que recuperaram para o imaginário social o encantamento da Rainha da Floresta e dos esquecidos povos indígenas do Acre”.
A cada edição era crescente a repercussão que o festival trazia levando a participação de grande público. “O Famp era o nosso espaço. Ali mesmo surgiam novas composições. Era uma vitrine de revelação de novos músicos, intérpretes e compositores acreanos”, disse o músico Clenilson Batista, do Grupo Capú.
O cantor Geraldo Leite foi vencedor do primeiro Famp, em 1980. Figuras como Pia Vila e Tião Natureza começaram a ficar conhecidos ao se apresentarem no festival. Até 1993, o Famp foi o espaço da produção musical que revelava a cada edição vários nomes e talentos.
Um dos ícones do movimento cultural acreano e um dos idealizadores do Famp, o jornalista Chico Pop, na ocasião do lançamento do Famp em 2003, foi um dos homenageados. Sua fala na época ao subir ao palco do Theatro Hélio Melo foi carregada de emoção: “Quando surgiu o festival em 1980, foi uma forma de incentivo para os artistas que tinham seus trabalhos engavetados. Agora o governo resgata esse sentimento para que novamente se possa transmitir a arte que existe no povo acreano”.
Em 2012, o Famp volta ao cenário musical acreano. “Com o tema “Pela Nossa Natureza”, pretendemos fazer o registro e divulgação da trajetória de um símbolo da cultura musical acreana, fortalecer e valorizar as nossas raízes e tudo o que nos é natural” diz a jornalista Alcinete Damasceno, à frente da Ciranda, produtora da edição 2012.
Francis Mary, presidente da FEM, também participou de edições anteriores, chegou a ser jurada ao lado de Chico Pop. “O Famp sempe foi um espaço de manifestações musicais das mais variadas. Ali se revelava vários artistas que compunham a vanguarda musical acreana. Eram poetas, escritores, vários compositores que de forma autoral cantavam o Acre, a nossa região”, disse.
Fonte: Agencia de Notícias do Acre
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