domingo, 1 de maio de 2011

A mais destruidora das armas de guerra é usada na Líbia: o estupro


A paz controlada do hotel onde os jornalistas são confinados pelo governo da Líbia foi interrompida em uma tarde de março pelos brados de Iman al-Obaidi, uma jovem de 26 anos, originária da cidade de Bengasi. Com os cabelos expostos e desgrenhados, a estudante de Direito repetia, chorando: “Eu fui estuprada por 15 homens das tropas do (ditador Muamar) Kadafi”. As primeiras mãos que chegaram a ela, agressivas, foram justamente a de mulheres. As garçonetes da hospedaria taparam-lhe a boca, ameaçaram-na com uma faca e chamaram-na de “traidora da pátria”.  Iman foi detida para que parasse de falar o que o regime não queria que o mundo soubesse. Chegou a ser chamada de “vagabunda” na TV líbia. Esse foi o preço pago pela primeira voz a denunciar os estupros coletivos que têm sido usados como arma de guerra pelo Exército do ditador.

Mais tarde, outras se juntaram a ela. O Centro Egípcio de Direitos Femininos lançou, na semana passada, um comunicado denunciando “casos de estupros coletivos de mulheres em diversas cidades líbias pelas forças de Kadafi”. E, quando o mundo acreditava que o show de horrores não poderia ficar pior, a ONG Save the Children reportou na última terça-feira que, depois de escutar os relatos de 200 crianças e 40 adultos, encontrou diversas evidências de que crianças a partir de oito anos foram abusadas sexualmente no país. “O mais preocupante é que apenas pudemos falar com um número limitado de crianças. O que estará acontecendo àquelas presas em Misrata e outras partes do país e que não tiveram voz?”, questionou Michael Mahrt, conselheiro da ONG.
A mais antiga das armas - Infelizmente, não é a primeira vez – e provavelmente não será a última – que estupros em massa são usados como estratégia de guerra. Essa é uma das armas mais antigas da humanidade. “As primeiras guerras foram, na verdade, estupros coletivos. Nas ‘tribos’ da Pré-História, eram os líderes quem mantinham relações sexuais com as mulheres do grupo. Os demais só podiam procriar quando ‘conquistavam’ fêmeas de outras tribos em batalhas”, conta Thomas Hayden, autor de Sex and War: How Biology Explains Warfare and Terrorism and Offers a Path to a Safer World (Sexo e Guerra: como a Biologia explica a guerra e o terrorismo e oferece o caminho para um mundo mais seguro, Benbella Books). 
Caminhando na história do homo sapiens, a violência sexual ganhou, com gregos e romanos, a definição de prêmio para os vencedores do conflito. Só no século XIX foi considerada crime de guerra. Hoje, é condenada pelo artigo 7 do estatuto do Tribunal Penal Internacional de Haia. Mas mesmo contra toda legislação e filosofia, a humanidade assistiu a episódios tenebrosos no último século. Um dos mais populares foi a Guerra da Bósnia, na década de 90, em que soldados sérvios foram estimulados por seus generais a estuprar mulheres croatas para distrair os inimigos. No Congo, mulheres, homens e até crianças pequenas são violentadas, há anos, por grupos armados como meio de mantê-los aterrorizados e submissos. Em termos de estratégia militar, a tática, aparentemente imitada por Kadafi, é bastante eficaz. “A psicologia é a seguinte: se você mata alguém no campo de batalha, o transforma em herói. E a honra que vem disso faz seus concidadãos mais fortes. Mas o estupro só traz humilhação. Você não acaba com vidas, destrói a alma de uma sociedade”, explica Hayden.
Os filhos do inimigo – O Exército nazista havia feito um estrago enorme na União Soviética no decorrer da Segunda Guerra Mundial. Quando, finalmente, os soviéticos chegaram à Alemanha, em 1944, seu ódio pelo povo alemão era imensurável. Estima-se que 1,9 milhão de estupros tenham sido cometidos por eles na ocasião. Em 2009, o psiquiatra alemão Philipp Kuwert analisou as consequências da violência sobre 30 dessas vítimas, então na faixa dos 80 anos. “Mesmo quase seis décadas depois da guerra, 1/3 daquelas senhoras sofria de estresse pós-traumático”, conta Kuwert. “Essa é uma característica comum a vítimas de abuso sexual em zonas de conflito. Também compartilham uma média de 12 estupros por pessoa e têm seus traumas agravados por outros, consequentes da guerra, como o deslocamento forçado e a violência não-sexual”.
Quando os soldados alemães voltaram do campo de batalha e descobriram que suas mulheres tinham sido violentadas, houve uma onda de divórcios. Os índices de doenças sexualmente transmissíveis, geralmente mais comuns entre homens, se inverteram em 1945. O regime nazista decadente fez uma lei autorizando o aborto que, na época, era criminalizado. Mesmo assim, algumas mulheres decidiram seguir com a gravidez. O mesmo aconteceu na Escandinávia, onde acredita-se que os militares alemães tenham deixado 70.000 filhos (entre estupros e casos de amor). Essas crianças, apelidadas de “filhos do inimigo”, nunca conseguiram levar uma vida normal e sofreram discriminações de todos os tipos. 
Na Líbia, as consequências são ainda mais funestas. Algumas tribos que compõem o país têm o hábito de matar, na maioria dos casos a pedido das próprias mulheres, as vítimas de violência sexual. Em países como o Paquistão, elas aderem ao suicídio. “Em algumas sociedades, o estupro de uma mulher é visto como o fracasso de seus parentes homens em protegê-la. E existe a triste visão de que a única maneira de livrar a família dessa humilhação é matar a mulher”, diz Hayden. Neste ponto da entrevista, ele para e comenta: “Não só é a arma mais antiga, mas a mais cruel já inventada pelo homem. Que sociedade pode sobreviver à culpa de ter matado suas próprias mulheres?”.

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